Há um longo silêncio no carro que
acompanha o casal como um terceiro passageiro.
Roberto e Valéria estão casados desde
julho passado, e esta é sua primeira viagem juntos depois da lua-de-mel,
seguindo para o litoral para um feriado prolongado, aproveitar sol e calor e
ficar apenas um com o outro algo que suas rotinas de trabalho impede mais
freqüente que não. A ausência de palavras começara alguns quilômetros depois de
deixarem a cidade, e parecia normal, estresse, cansaço ou sono que fosse, e
conforme a noite avançava, parecia cada vez menos provável que alguém abriria a
boca. O rádio também parecia cooptar com esta situação e não emitia som algum
além de chiados e ruídos intercalados, o rádio era a melhor opção de música do
aparelho que sobrevivera a uma tentativa de assalto, sem jamais funcionar da
mesma forma. Somente as freqüências moduladas atravessavam seu sistema de som,
e isso era suficiente... Para qualquer outra noite.
Ela olhava pela janela, com o rosto
oposto a Roberto, fingindo dormir, e observava as luzes passando, as gotículas
de garoa de uma chuva a se formar, e esperava no horizonte algo que lhe desse
coragem para falar.
Ele dirigia, seu pensamento perdido,
procurando um jeito de acabar com aquela situação constrangedora, enquanto o
veículo de igual forma se desviava do curso.
A chuva se intensifica. As luzes da
estrada diminuem juntamente com as placas sinalizadoras. A freqüência de
buracos aumenta.
O barulho frenético das pás a remover
água do vidro toma conta do pequeno ambiente do carro. Mal passa uma vez e já
precisa agir novamente para proporcionar alguma visão da pista.
Subitamente uma besta negra alada se
apodera do vidro dianteiro, assustando os passageiros e causando um pânico e
inação momentânea. Os freios foram a solução mais lógica, causando uma leve
virada do volante que aliada a água na pista resultando em uma derrapagem e
posteriormente o capotamento do veículo.
Neblina surge e domina os sentidos dos
dois, e em breve ambos estão aquém de qualquer domínio consciente.
*
**
***
O mundo se
tornou um lugar confuso entre sonho (ou pesadelo?) e realidade, e por minutos indistintos
o eixo do tempo parecia desconexo fluindo como bem entendesse. Uma explosão
sinestésica parecia incendiar. Eu vi chuva, eu vi fogo e destroços num momento.
No momento
seguinte o cheiro de éter me sufocava, apesar de haver uma máscara plástica de
oxigênio tapando meu nariz.
Grogue, eu via
rostos. Rostos comuns, rostos incomuns, rostos de pessoas famosas, rostos de
personagens de desenhos animados de minha infância, rostos de pessoas mortas.
Rostos que flutuavam a meu redor, de forma suspeita a cada abrir e fechar de
olhos, que pelo que parecia, duravam uma eternidade para cada instante.
O frio foi
aumentando, e, mesmo ciente de onde estava, sentia como se estivesse ainda
completamente encharcado, como quando retirado do carro.
Encurtando um
pouco essa inusitada e longa passagem, posso dizer, com toda a certeza que
agora tenho do que aconteceu, que, acordei definitivamente, momentos depois,
fora de meu corpo, por mais estúpido e bizarro que pareça admitir tal coisa,
mesmo que passando por cada etapa do processo.
Minha primeira
pista foi notar que não mais me sentia inundado por qualquer sentido em
particular. Mal ouvia as coisas, pra dizer a verdade, e enxergava em um tom
embaçado, uma forte neblina em um mundo branco e preto, com ar de filme antigo
e mal conservado. Conforme andava, parecia cada vez mais perdido entre
realidade e sonho. As coisas e pessoas ao redor pareciam destoantes, em uma
velocidade superior à minha. Era como seu eu andasse em câmera lenta, mesmo que
eu, de fato, sequer estivesse andando a maior parte do tempo, somente
estupefato pela situação toda que me atingia de súbito. Mas eu consegui, em
algum tempo me acostumar com a idéia, e com a nova situação. Parecia bastante
lógico, afinal... Eu estava morto.
Notei
efetivamente ao ver, com uma assombrosa clareza, meu corpo deitado, imóvel e enregelado
sob o leito, do que parecia não mais ser uma unidade de tratamento intensivo,
mas ainda no hospital... Se estivesse vivo, com toda a certeza essa imagem me
atormentaria pelo restante de minhas noites de sono.
Comecei a
andar pelos corredores, tentando entender o que havia se passado, o que estava
acontecendo, e efetivamente, como eu me encaixo nessa nova condição. Os rostos
que olhavam em minha direção não me viam, e, mesmo após inúmeras tentativas,
mesmo gritando no ouvido (literalmente) de algumas, notei que, de fato, era
como se não estivesse ali.
Por algum
motivo, me senti enganado. Todos esses anos, desde minha mais tenra idade,
ouvindo histórias de meus avós e parentes e amigos, sobre estas fantasmagóricas
entidades que atravessam paredes, cruzam os céus com admirável destreza e fazem
praticamente de tudo que é somente imaginável a um ser humano, enquanto eu
estava ali, num hospital, tendo de caminhar como gente normal, trombando com
objetos sólidos e mesmo com pessoas, sem que essas não me notassem, e somente
achassem estranho, ou que uma passagem de ar encanado (ou algo que o valha) as
atingia no momento. Parecia...
Hmpf... Se
tudo isso é verdade ou um sonho, bem, quem sou eu pra julgar, não é mesmo? Eu
somente vivi a coisa toda... Mas poderia ser a forma que meus neurônios, em seu
canto de cisne, optaram por me oferecer consolo diante da morte? Poderia ser um
sonho, tão e simplesmente? Poderia ser o bizarro a acontecer e ser vivenciado?
Acredito que aconteceu, porque acredito realmente que passei por tudo isso...
Quem realmente está sapiente o suficiente pra dizer qual é a realidade de
histórias ficcionais, senão o próprio autor? Claro, que, neste caso, eu sou
mero instrumento narrativo, e, uma vez autor, abro mão desta faceta, pois ao
mesmo tempo sou personagem, e como personagem, meu conhecimento e contexto
limitam-se sempre ao contexto e conhecimento de minha persona himilde e confusa,
no momento e instante que ocorrem os fatos. Mesmo que sejam narrados após,
mesmo que nunca o sejam, os conhecimentos e contextos são inerentes de dado
momentum, e, pareço estar me perdendo no meu, divagando e (me) questionando.
Estava tomando
consciência de minha situação, e, enquanto passeava pelos corredores do
hospital, confuso e aturdido com tudo, resolvi procurar, da maneira que pude,
por Valéria. Foi quando me perguntei, quanto tempo havia passado desde o
acidente. Tudo ocorrera tão rápido, e era tão confuso... E confesso também que
não sabia exatamente porque estava ali, diante da porta, olhando cada
movimento, cada pessoa que entrava e saía. Talvez quisesse, ou tudo que
realmente queria, era me despedir. Parece piegas, mas eu realmente me sentia
compelido a fazê-lo. Dizer algo como “Adeus e boa sorte”, e compassivamente
dar-lhe um beijo sob a bochecha, ou a testa. Eu a havia colocado nesta
situação, já sabia ser responsável por meu próprio óbito, e agora estava diante
do sofrimento que ela teria pela frente.
Acordar talvez
com alguma seqüela em um local distante de casa, sozinha e ciente de meu
falecimento, sem meio de transporte direto, com o dinheiro nas malas que
ficaram no carro, e somente com alguma sorte, estaria com o telefone por perto,
ou ao menos a bolsa, onde guardava seus documentos pessoais... E eu, ciente de
ser responsável por tudo.
Não somente
por dirigir o carro, afinal, também fui vítima do acidente, e tão responsável
quanto o mais puro acaso. Pela insistência de fazermos tal viagem, saindo no
horário que saímos, de carro, mesmo com a chuva perene... Mesmo com a clareza
de que não estávamos bem, de que, a viagem não seria o acerto que esperei, após
a primeira hora de tráfego. Não conseguia deixar de pensar que, se eu tivesse
ficado na minha, quietinho estaríamos os dois por ai. Um vivo, e o outro sadio.
Talvez não. Talvez todo esse martírio fosse injustificado, e, caso nada
fizéssemos, o botijão de gás explodiria em minha cara, ou um avião cairia no
nosso apartamento. Na realidade, suposições nunca levaram a lugar algum, e não
começariam hoje. Eu precisava encarar os fatos, e o que estava acontecendo.
E precisava
ver Valéria. Essa é a única certeza que eu tenho, mesmo que não signifique
coisa alguma ou vá trazer algo de bom.
Eu preciso ver
Valéria.
Mas na verdade
tudo que fiz foi ficar sentado, pelas próximas duas horas, diante da porta da
UTI, imaginando o que poderia acontecer. Novamente, estava perdido em um mar de
‘se’s ... E se minha presença fizesse o ambiente deixar de ser esterilizado? E
se eu danificasse os equipamentos? E se...?
Resolvi
esperar que, pelo menos ela estivesse mais estável, e fiquei atento a cada um
que entrava e saia da sala. E finalmente pude entrar.
Senti que a
sala congelou, e até o tempo parece ter fluido mais devagar.
Enquanto
estava diante dela, parecia que estávamos sozinhos no mundo, não, melhor, no
universo... E foi muito bonito, e estranho. E inútil.
Todo o
sentimento de conforto e paz que busquei, de nada valeram. Eu não consegui me
despedir, eu não consegui me aproximar satisfatoriamente, e, tudo que pude
fazer foi ver Valéria ali, presa a tubos e fios e completamente inconsciente.
E foi quando vi
um detalhe importante. Mais uma vez, não sei explicar direito como me veio, mas
vi algo que poderia salvar a vida de Valéria e precisava avisar algum médico. Só
podia ser este o motivo de estar ali.
Busquei forças
em meu âmago, e gritei até ficar exausto, inutilmente. E pela segunda vez em tão
pouco tempo, fiquei extremamente frustrado. Com uma caneta pincel eu escrevia a
mensagem no quadro branco do refeitório dos médicos, e, eles passavam alheios
ao texto.
Tentei as
paredes de banheiros, dos quartos próximos a onde ela estava ou mesmo dos
consultórios dos médicos... Nada.
Não desisti de
forma alguma, porém, e de toda forma por mais bizarra que me parecesse, tentei
fazer barulho ou chamar a atenção, mas nada. Nenhum resultado, nenhuma
alteração, nenhuma reação, me deixando ainda mais revoltado.
Cada vez mais
frustrado com a situação e percebi que minha presença causou alguma
interferência no pager de um dos médicos, que, cada vez que eu passava por
perto, ou me aproximava (sim, testei isso algumas vezes, ficando bem perto e me
afastando), o aparelhinho emitia um zumbido pouco característico e tive a idéia
maluca de acionar algum equipamento eletrônico. Fui ao saguão e tentei utilizar
um telefone público, que logo percebi estar quebrado. Procurei outro e outros,
com resultados semelhantes.
Ainda na
recepção, peguei o telefone celular de uma das enfermeiras, e, apesar de mais
sucesso para completar alguma ligação, pouca ou nenhuma diferença fez.
Bem que dizem
que homens mortos não contam histórias...
Desesperado,
continuei tentando, e num último esforço enviei uma mensagem de texto. Escrevi
pedindo que contatassem urgentemente a UTI e informassem do problema que estava
ocorrendo com a paciente Valéria, que poderia morrer nos próximos instantes se
os médicos nada fizessem. E fiquei esperando por um tempo.
Nada.
Tive uma nova
idéia e resolvi partir para uma nova tentativa quando comecei minha busca por
um terminal de computador, isolado o suficiente para não chamar atenção, e foi
no almoxarifado que encontrei um.
Comecei a
redigir um pequeno texto, o qual enviaria a todos os amigos, parentes,
conhecidos e desconhecidos que pudesse. Em minutos, eu passei por tudo que é
tipo de fórum, rede social, sala de bate papo e similares, e enviei o seguinte
texto:
“Pode parecer
loucura, você pode não acreditar (e nessa altura do campeonato, pra mim, não
faz tanta diferença), mas estou morto, e esta foi a única forma que consegui
encontrar para me comunicar com o mundo exterior, e, preciso de sua ajuda.
Mais cedo, na
data de hoje, sofri um acidente em uma rodovia sentido capital/litoral, e fui
trazido ao hospital Percival Quadros, em Guajará, e acabei não resistindo aos
ferimentos. Minha namorada, Valéria, porém, ainda está viva, entrando e saindo
de cirurgia já há algumas horas.
Pra sua
infelicidade, um dos equipamentos do hospital está com defeito. Não sou médico,
nem tenho conhecimentos para dizer o nome do aparelho... Tudo que sei que ele
está medindo incorretamente os sinais vitais de Valéria, e com isso as dosagens
de medicamentos estão incorretas, que devido o estado complicado pode acarretar
em óbito.
Por favor,
mesmo que não acredite muito em minha história, não lhe custa muito fazer isso:
Ligue para hospital e comunique o ocorrido. Esta simples ação pode salvar a
vida de Valéria, e nada mais me importa neste momento.
Grato,”
Tentei versões
menores do texto, versões em que eu não falava sobre o fato de estar morto, ou
que só falava de Valéria... Tentei mandar o mesmo para a administração do
hospital, para os e-mails internos dos funcionários, e passei quase uma hora
entre enviar e conferir e-mails e mensagens da internet em geral.
Fiquei diante
do monitor, olhando e conferindo enquanto a mensagem rodava e circulava, vendo
algumas reações imediatas em alguns lugares (como ela sendo apagada
rapidamente, ou sendo alvo dos mais variados tipos de gozação e chiste).
Não havia mais
alternativa... Nada funcionava...
Estava
desesperado... Estava furioso.
Queria gritar
a plenos pulmões, mas, como aconteceu com minhas centenas de mensagens, ninguém
ouviria... Ninguém prestaria a mínima atenção.
Invisível e
desprezado. Nada mais que uma lembrança.
Nada mais que
uma sombra.
Somente um
fantasma.
...
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