Pesquisar este blog

17 de abril de 2013

Ecos


É apenas uma sexta feira, comum como qualquer outra.
Um dia agradável, com um céu azul pulsante, e um ar irradiando uma euforia e alegria típicas somente do último dia da semana, sentida a cada momento, em todos os cantos. Os sorrisos se encontram nos rostos com maior facilidade, o café desce com maior suavidade, e até parece mais gostoso, e mesmo o olhar mesquinho do chefe em busca de prazos, objetivos e maior produção, parece ignorável... Pra se dizer o mínimo.
Ainda assim, há algo de diferente no ar.
Uma certeza quase pungente de que algo está acontecendo, ou está para acontecer, um frio cortante que percorre toda a espinha em menos de uma fração de segundos... Em cada rosto novo nas ruas, cada sorriso. Essa certeza parece cada vez maior.
Ao chegar no ambiente de trabalho, parece evidente que algo está errado, mas não fica lógico definir exatamente o que é.
Ninguém parece perceber, ou saber... Ou sequer notar.
E o dia parece fluir com um senso próprio de naturalidade e regularidade, e passa como num salto. Como num sonho.
Relatórios enfadonhos, conversas que vão de nada a lugar algum, e entre uma rotina administrativa e outra, uma ida ao banheiro ou uma escapadela para pegar mais um copo de água, ou simplesmente para sair daquela sufocante atmosfera do ambiente onde se trabalha, de encarar a tela sem vida diante a qual a sua própria se esvai.
Há algo estranho no ar.
Confuso, desorientador, e ao mesmo tempo familiar, pois esse senso de estranheza parecia não afetar a mais ninguém. Talvez medo, talvez a agonia do ócio mental e da estafa, talvez nada mais que uma vontade fazer algo de toda a confusa rotina. Talvez paranóia, loucura, a pressão finalmente cedendo de formas antes não previstas.
Talvez estranheza... e somente isso. Porque é necessário afinal explicar todas as coisas?
Afinal, era apenas mais um dia... Um estranho dia e nada mais.
Quantas vezes a sensação de estranheza e torpeza não percorre a mente de alguém?
Sente-se um estado de embriaguez perene, e a caminhada para o almoço parece uma longa maratona sem rumo e sem fim.
Olhando ao redor há um borrão do que havia apenas segundos atrás. Tudo parece ainda mais soturno e sinistro, como se repentinamente o dia se tornasse noite, ou uma tempestade estivesse mais próxima. 'Talvez seja apenas um sentido metafórico', por algum motivo aparente chega a ser cogitado ao observar o semblante enegrecido do horizonte.
A chuva não tarda, e faz com que velhos dias ruins sejam revividos. Há tempos não ficava tão encharcando, ainda mais com metade do expediente ainda por cumprir.
Depois de entrar na primeira espelunca do caminho, onde parecesse que havia menos chuva dentro que fora, parece fazer sentido comer por ali mesmo, e, aparentemente desprovido de qualquer senso de asco pelo ambiente, apesar de tudo indicar sem necessário, e salutar, é pedida uma combinação matadora de gororoba quase pronta e refrigerante quase gelado. O copo imundo é limpo com um pano, que faz a sujeira destacar-se ainda mais. A sujeira só é escondida pelo borbulhar do carbono do refresco reagindo.
O almoço demora a chegar e quando chega, é difícil de digerir.
A refeição industrializada demais para ser saudável, e com uma aparência feia demais para parecer saborosa é processada rapidamente. Talvez seja a fome.
Talvez seja apenas a vontade de ver o dia chegando ao seu final, o mais rápido, e sair daquele ambiente. De deixar aquele balconista com o sorriso que é um misto de satírico e assassino serial. Ou apenas o olhar de alguém que esconde coisas demais, e esqueletos que encheriam vários armários. Possivelmente a dona, resmungando e maltratando clientes (como se fossem muitos), funcionário, e até mesmo os pobres pássaros que tentavam buscar abrigo da chuva. Até a iluminação pode ser vista culpada do mal ambiente, com suas toalhas xadrezes mal bordadas e rasgando, as cadeiras tortas e mancas e a pintura descascando nas paredes.
Com certeza sair dali parece uma benção disfarçada. Mesmo que seja pra tomar outra dose de chuva antes de voltar para quatro horas de serviço pouco atrativo e interessante.
Rotina, densa rotina.
Por sorte ninguém percebe quando os sapatos são removidos e deixados ao banheiro, junto das meias, para secar, pelo menos um pouco, até o fim da tarde.
O fim que tardava a chegar.
E tudo parecia conspirar em tal sentido.
A chuva intensifica e ocasiona uma parada temporária no fornecimento de energia, os ventos com grande força sopram em direção das paredes do prédio, e por algum instante sombrio, nenhum som foi emitido, ecoado ou ressonado por todos os cantos do escritório.
Na completa treva, sem um único som, a agradável sexta feira se transforma em um cenário tirado diretamente de um filme 'B' da década de setenta, com uma atmosfera densa e nebulosa. Nota-se até mesmo uma sombria neblina surgindo, sabe-se lá de onde, e encobrindo cada canto e cubículo do escritório.
Então surgem os gritos.
Altos, fortes, estridentes.
A torpeza, talvez inerente de alguma contusão durante o bizarro silêncio no escritório, talvez inerente de algo mais, talvez ainda não relacionada a qualquer coisa lógica ou previsível e imaginável toma conta rapidamente.
Sem saber explicar, como começou ou de onde veio, uma mancha de sangue se faz notável, no dorso, e não muito depois o sangue é igualmente visto na palma das mãos. O choque é incontrolável e inconsciente, e a exatidão da reação não mais previsível: Respiração pesada e penosa, sudorese e agitação, falta de ar, e um estado de euforia e estresse que se situa no olhar confuso por todo o ambiente incapaz de reconhecer ou situá-lo.
Gritos de pânico e terror ressoam e ecoam pelo ambiente, até que finalmente, após toda a confusão inicial, é possível saber onde se está: Em casa, mais precisamente no próprio quarto.
O sangue que mancha a roupa e tecidos e escorre da cama até o tapete, encharcando os sapatos, e em alguns instantes também a pantufa da esposa. Seus gritos cessaram há poucos instantes, mas os do filho, adolescente de não mais de quinze anos ainda reverberam enquanto o momento de choque começa a passar. Por vários instantes ainda é difícil saber exatamente o que ocorreu, ou onde estava quando tudo... Toda essa barbárie tomou lugar.
Somente quando é possível discernir as palavras do menino que tudo atinge com um flash, numa sucessão rápida e coerente de eventos. Agora tudo fazia sentido.
E uma única palavra, repetida exaustivamente, entre choro, gritos e soluços, foi o que fizera tudo mais lógico: Assassino.
Assassino. Assassino! ASSASSINO!
Ecos
Acordo, e vejo que tudo está da mesma forma como deixei.
Minha esposa repousa, calmamente na cama, com sua respiração suave e delicada. Ainda que eu esteja ofegante e suando como um porco, ela permanece estável como uma rocha ao meu lado, repousando.
Saio, devagar e com pé sobre pé da cama. Encosto vagarosamente a porta ao deixar o quarto. Confiro o estado de meu filho no quarto ao lado.
Da mesma forma que minha esposa, ele repousa tranqüilo e calmo, abraçado ao travesseiro, e com a coberta aos pés. Antes de partir para a cozinha, o cubro novamente e beijo sua testa. Ele esboça alguma reação inconsciente, mas não acorda, mal se move, e de certa forma fico até aliviado com isso.
Enquanto me sirvo de um copo de leite, começo a tentar digerir o que acabara de me acontecer.
Aquele sonho... Não é a primeira vez que experimento uma sensação de sonho tão real e vívido... E pra aumentar meu medo, também não é a primeira em que vejo algo tão aterrador.
Meses antes vira minha mulher também assassinada, de forma semelhante, e atribuíra a cenas chocantes que vira na época.
Não podia deixar de me perguntar o que aquele sonho tão bizarro queria dizer?
Tenho medo de voltar a dormir...
O leite desce amargo, queimando minha garganta, que assim como minha cabeça, não estava preparada para receber aquilo. E em pouco mais de dois minutos meu estômago e meu cérebro oferecem a mesma reação, e da cozinha parto para o lavabo onde contemplo o vaso por alguns instantes, e vejo que o leite e minhas idéias foram mal recebidas.
Passo o resto da noite sentado no sofá, entre momentos de cochilo e reprises de antigos seriados na televisão, eu pouco descanso.
Acordo pela manhã com o cheiro das torradas e do café sendo feito... Acordo num estado lastimável. Parece que fui atropelado por um trator, que não satisfeito deu marcha a ré e passou novamente... E não apenas uma vez.
Levanto do sofá, desligo a tevê, e ainda vagando entre os reinos de Morfeus e a realidade, caminho até a cozinha. O estado de torpor é pavoroso, exatamente como no sonho.
Sento na primeira cadeira... Naquela mais próxima de meu caminho, e ouço um “bom dia” animado, seguido por um estarrecido “Nossa, você está péssimo”.
Não tenho qualquer pique para seguir com a conversa, e apenas um sorriso amarelo enquanto pisco pesadamente sentado é o que consigo fazer.
Ela demonstra todo o zelo que uma mãe deve ter, e com as costas da mão toca minha testa, fazendo uma enxurrada de perguntas que não consigo compreender, e das quais poucas respondo, monossilabicamente, apesar de não lembrar responder nenhuma.
Apenas rio com a mesma expressão de sono, com a cara mais lavada do mundo, para que ela não se preocupasse mais. Não queria que minha noite infernal se tornasse um empecilho pra rotina da casa, e principalmente, pra rotina dela...
Ela é responsável por manter os trens nos trilhos aqui dentro, e é preciso admirar alguém capaz de fazer isso num lar... E minha mulher é alguém realmente admirável.
Desde que a conheci, ela é uma das pessoas mais fascinantes, a mulher mais incrível do mundo. Existe um brilho... Seu sorriso carrega uma intensidade... Deus, eu mal posso começar a descrever... Ela é a maior dádiva que recebi, e, sinceramente não consigo me imaginar um dia sequer sem ela por perto... Minha vida desmoronaria. Perderia o sentido.
Deve ser isso que me abale tanto no sonho...
A idéia de que eu poderia eliminar de minha vida a maior razão de estar vivo?
Levanto-me para trabalhar, e, a rotina do escritório segue num ritmo frenético de sonho. Na primeira oportunidade ligo para um amigo, um ex-policial a quem convido para o almoço. Fazia tempo que não nos víamos, então ele relutou um pouco. Chegou atrasado como que para justificar a relutância e, conversamos um bocado antes de eu entrar no assunto que me perturbava.
Ele, como policial cuidou de um bocado de casos estranhos em sua carreira... Viajou pelo país, viu muita coisa que preferia não ter visto, vivenciado ou conhecido. Uma vez que a caixa de pandora estava aberta... Bem, ele visitou um psiquiatra por algum tempo para fazer às pazes com seu passado. Para que ele pudesse aceitar melhor tudo que vivenciara, e pudesse viver melhor. Tentou alguns esportes, tentou algumas coisas, e mesmo a terapia e os remédios não facilitaram suas noites de sono.
Nada parecia resolver. O trabalho policial nunca é fácil, e com todas as dúvidas, todos os problemas e percalços, coisas ordinárias viravam barreiras intransponíveis.
Só quando abandonou a polícia, alguns anos atrás, que ele encontrou um novo médico, que lhe orientou, sem o uso de medicamento algum, somente com as conversas e terapia, ele se recuperou e hoje vive bem, sem medo de seus esqueletos no armário.
Com o cartão deste psiquiatra em mãos, aproveito os minutos finais de meu almoço e agendo o mais rápido que posso uma sessão. Último horário do dia, houve um cancelamento, e, com as sessões adiantadas, ela consegue encaixar um novo paciente urgente, como enfatizei. Ah, sim, ela. Doutora Fabiana Andrade. Parece uma mulher bastante ocupada... Dei sorte.
O dia passa agitado e atribulado, entre ligações, pedidos perdidos e clientes frustrados e documentos que precisavam ser assinados ou entregues e que, por algum motivo, não estavam em lugar algum para serem encontrados. Enfim, a rotina comum de uma sexta-feira... A bruxa à solta, e o caos pulsando em cada página de papel impressa ou usada na firma.
Seis horas chegam rapidamente, e, corro para minha consulta.
Trânsito infernal, mesmo para uma distância pequena.

...
_ Essa é sua primeira consulta, não? – a doutora pergunta, logo que ele senta-se, ainda bastante desconfortável, e igualmente constrangido pelos doze minutos de atraso.
_ Sim, eu pedi alguma urgência uma vez que...
_ Não, digo... É sua primeira consulta com um psiquiatra na vida, correto?
_ O que me entregou?
_ Além do atraso, que não é algo comum, afinal, você paga pela hora e, como foi informado, essa É a minha última hora por hoje... Você está tenso. Bastante tenso. E desconfortável. Pelo que estou vendo, está suando rios. É como se estivesse fazendo uma entrevista de emprego. Pelo primeiro emprego, até. Não se preocupe. Isso é normal... É bastante natural.
Você só precisa desenvolver o seu ritmo, refletir para chegarmos ao cerne do que lhe perturba.
Admirado pela honestidade e assertividade da médica, ele começou a sentir-se mais confiante. Colocou no sofá o paletó que carregava com certo desconforto, abriu os botões da manga da camisa, e afrouxou a gravata.
_ Doutora, pode parecer maluquice, pode ser só coisa da minha cabeça... Enfim, pode ser que eu esteja valorizando demais algo sem importância... Mas eu tive um sonho. Na verdade um pesadelo. Que me lembro, pela segunda vez essa noite. A primeira foi alguns meses atrás. Desta foi mais vívido, mais real. Mais perturbador.
A médica ouvia concentrada, anotando ocasionalmente em seu bloco, sem intervir, somente dizendo ocasionais ‘continue, por favor’ e semelhantes, até que a história se concluísse.
_ O que a senhora acha? Por favor, seja franca... Isso vem me enlouquecendo. Tive um dia infernal hoje pensando e revivendo as experiências desse sonho...
_ Bem... Não sei o que disseram sobre mim por aí, mas, particularmente eu não sou uma dessas psiquiatras que acredita muito em discussões sobre sonhos. Quer dizer, sonhos não são realmente uma ciência exata. Não é como se existisse um dicionário ou se existissem pontos e pontes entre o que você vê no sonho e o que ele quer dizer para você.
Ao longo dos séculos, muitas coisas foram ditas, analisadas e pensadas sobre os sonhos. Pra alguns eles possuem o dom da mediunidade. Para outros são portais para mundos, universos e dimensões além da nossa. A obra mor de Dante Alighieri, por exemplo, é atribuída a noites de sonho nos quais ele alega ter presenciado cada uma das passagens descritas em sua poesia.
 Sonhos têm muitas interpretações. Muitas das quais sequer são válidas, muitas das quais são simples observações sobre o que eles implicam. Nenhuma resposta que eu lhe ofereça é a definitiva, pois, querendo ou não, meu domínio sobre os reinos oníricos não é maior que o seu... E eu particularmente não acredito que os segredos da humanidade residam nos sonhos.
Não acredito em interpretação de sonhos como uma ciência.
Eles são uma resposta natural do nosso inconsciente, manifestando medos, esperanças, perspectivas. Essa é a resposta científica... E basicamente é tudo que sabemos de concreto sobre o processo todo.
Com alguma interpretação, significa que você se vê preso a uma rotina que não lhe agrada, e, de certo ponto culpa sua família por ter de trabalhar em um emprego que não gosta, e se vê ligado a uma realidade obtusa, estranha, que difere dos seus sonhos e ideais. De uma forma radical, assassinar a sua mulher e filhos seria uma forma de expurgar essa vida, e ‘começar de novo’.
Não significa que você vá fazê-lo, ou que queira realmente fazê-lo.
Obviamente, como eu disse antes, não existe uma razão clara para isso. Uma verdadeira interpretação só poderá advir do conhecimento de seus sentimentos. Quem você é, quais suas metas e objetivos e o que eles representam para você. E o que a sua família representa nesse caminho. Como você os vê realmente. Obstáculos na formação de seus sonhos, massa, concreto e pedras para a lapidação dos mesmos, ou os arquitetos e engenheiros da sua obtenção?
Seu sonho não é o que está perturbando sua rotina, mas devido ao baque que um sinal de que existe sim algo que te deixa descontente. E está agora arranhando a superfície, chamando ajuda.
Se não se importar, gostaria que nossas consultas fossem, no mínimo semanais.

...
Pelo final de semana que segue, nada de novo. Nenhum novo pesadelo. Nenhum temor. Nenhuma dúvida ou questionamento.
 Na segunda ele chega a questionar se deve marcar uma nova consulta, quando, à noite é surpreendido por um tipo de temor noturno maior e mais intenso que das duas primeiras vezes. Ele quase sentia o peso dos familiares mortos... Podia sentir o odor do sangue. A temperatura quente de sangue ao deixar o corpo. Pode ver cada fio de cabelo, cada manchinha... Cada detalhe mínimo que tentava buscar para provar que sua mente não seria capaz de criar um artifício tão elaborado. E estava tudo ali.
A cicatriz minúscula que sua esposa possuía na orelha por um furo mal feito (motivo pelo qual não usava brincos). A mancha de um antibiótico no dente do filho. E o peso... Estranhamente eles sentiam e pesavam... Algo que pra ele, era absurdo. Sonhos não podem ter peso. Não podem ter densidade!
Viu-se em um espelho, com um olhar vidrado, com o sangue manchando suas roupas e escorrendo por seus braços. Viu a imagem de um homem que ele não reconhecia. Não podia ser ele. Não conseguia aceitar isso. Se debatia, se forçava a acabar com o pesadelo.
Não conseguia acordar. Sua voz estava presa dentro de sua garganta. Por mais que tentasse dizer algo, por mais que tentasse gritar... Não havia força suficiente. Com todo seu esforço, só produzia um mínimo ruído, não mais que um gemido esganiçado. As pernas tremiam, os braços não possuíam qualquer firmeza, a cabeça girava. Sentiu então o braço esquerdo começando a formigar.
Estava tendo um ataque cardíaco.

...
Acordou doze horas depois, com uma ponte de safena, e acompanhamento médico pelas próximas vinte e quatro horas. Sua esposa o acompanhava, sem poder entrar no quarto.
Seus movimentos eram bastante restritos. Mal conseguia forças para mover os dedos, mover a mão. Nas primeiras dez horas da recuperação, só piscara e dormira. O resto as máquinas, sondas e aparelhos fizeram por ele.
No dia seguinte, um pouco mais forte, conseguiu respirar sem aparelhos, e falar.
Havia peso em sua voz.
No primeiro diálogo que teve com a esposa, pediu gentilmente que ligasse para um número, no paletó que usara sexta-feira. Era o número da psiquiatra.
Nunca chegou a explicar porque fizera a visita a médica no primeiro lugar, e nem imaginava que na condição debilitada que estava, que conseguiria. Mesmo assim, pediu que a mulher ligasse para a médica, e, que, tentasse convencê-la a fazer uma visita. Queria muito falar, mesmo que algumas palavras com ela.
Sentia que, nesse momento, ele precisava de uma segunda sessão. Um momento para discutir o novo pesadelo, ou o que quer que tenha sido aquilo. Pra ele foi real.
O peso do sonho, o infarto do sonho era o que ele carregava ali.
Não havia outra explicação. Não havia outra razão.
Seu coração é saudável, faz exercícios regulares, controla colesterol e outras anomalias cardíacas. Não fuma, não faz uso de drogas ou substâncias ilícitas, nem se alimenta tão mal. De forma alguma consegue imaginar um infarto desta natureza ocorrendo tão do nada.
Foi o sonho.
E agora que tinha uma prova disso, sabe que precisaria de ajuda.
Se o sonho fosse realmente uma visão, seu organismo mesmo estava a rejeitar aquele ser. Como saber se os eventos eram apenas mais um dèja vu ou viagem temporal?
Mais tarde ainda naquele dia, a médica chegou, e foi surpreendida pela esposa, a cobrar-lhe algumas explicações, afinal, não imaginava que o marido passava por tal sorte de tratamento, nem que, num momento de tal fragilidade, recorreria em primeiro instante à médica em contrário de tantos outros amigos e familiares.
Não menos surpresa, a médica somente se defendeu, atestando que, de forma complementar a situação, tiveram apenas uma seção na sexta feira, e que ele estava bastante abalado. Talvez abalado o suficiente para associar o que lhe chocara ao seu estado cardíaco. A esposa não estava satisfeita, mas entendeu. Sabia que a verdadeira razão de seu descontentamento era o fato do marido não procurá-la em primeiro lugar. Estava apenas chocada com tudo isso, tão de repente... Oras, parecia não conhecer o próprio marido, pensou. Sentiu-se traída.
Voltou para casa, para pensar um pouco, para escapar desse clima denso do hospital.

...
_ Desculpe chamar a senhora assim, doutora...
_ Tudo bem... Quando fiquei sabendo de seu estado achei melhor dar uma passadinha pra conversarmos.
Depois de um breve comentário e um silêncio levemente constrangedor, a doutora foi direto ao ponto: Você acha que isso teve algo com os seus pesadelos?
_ Não sei... Dessa vez foi estranho... Quer dizer, sempre é estranho, mas dessa vez foi real. Eu senti cada fio de cabelo de minha esposa... Vi cada sarda e pintinha que meu filho tem... Eu senti o cheiro do sangue, e o calor deste e o mudança do odor quando começava a empoçar... Eu senti a eletricidade no ar... Tudo era real, doutora.
O enfarto começou lá. Começou do pânico daquela situação... Eu não tenho doenças coronárias... Não tenho histórico na família... Não tenho colesterol alto ou qualquer outro indicador.
E mesmo assim aqui estou com um zíper no peito a cicatrizar.
Ela admirou em silêncio contemplativo o desespero daquele homem. Suas lágrimas eram sutis, mas diziam mais que toda palavra que saia de sua boca. A dor era insuportável. A agonia que sentia ultrapassava das medidas dos aparelhos, que mal eram capazes de notar.
Havia apenas o normal e o rotineiro em cada uma daquelas máquinas, registrando uma recuperação esperada em uma vítima de ataque cardíaco.
Nenhum fio de cabelo, nenhum registro eletrônico fora dos padrões.
No entanto, era uma situação fora de parâmetros.
_ Eu... Eu não sei o que lhe dizer... Como oferecer conforto, ou como dizer algo que possa ajudar... Quer dizer... Tudo que eu consigo pensar, e ver como uma alternativa, como uma peça pra esse quebra-cabeças, é que talvez seu problema seja de outra natureza, além de minhas capacidades.
O que quero dizer é que, talvez, seu problema seja algum distúrbio do sono. Algum tipo de transtorno no seu cérebro... Ou mesmo no seu organismo que não processe corretamente os estágios e os passos da letargia.
No meu escritório eu tenho o telefone de um amigo, que trabalha especificamente com pesquisas dessa natureza. Tudo é realizado em um laboratório que fica um nível abaixo do solo, para que não existam interferências e ruídos do ‘mundo da superfície’ como ele gosta de chamar.
Se eu estiver correta, não existe ninguém melhor no mundo para te diagnosticar.

...
Após uma breve consulta, são agendadas diversas sessões para as noites seguintes para que sejam realizados estudos durante o sono. Várias e contínuas sessões sob os mais diversos tipos de aparelhagem possíveis e imagináveis, medindo e catalogando cada ação e reação, além de câmeras especiais monitorando e registrando cada movimento, cada alteração de sua conduta.
Durante o dia, a mesma rotina de sempre, à noite ele dorme numa câmara hiperbarica, conectado a fios e equipamentos mais caros que sua casa.
Quinze dias para determinar alguma condição adversa.
Nenhum resultado conclusivo, apesar dos relatos contínuos de que o pesadelo continua a assolá-lo. De noites seguidas acordando encharcado de suor.
Aos gritos e ofegante.
Nada.
Somente mais perguntas. Mais dúvidas.
...
Após quinze dias dormindo sozinho e perdido em pensamentos, regresso para casa de vez.
Minha mulher me olha confusa. Ela sabe.
Eu não a culpo. Nem posso... Afinal, sou eu quem sonha em matá-la, não é mesmo?
Ela não oferece qualquer tipo de apoio ou conforto.
Não imagino que o faria em situação contrária.
Como no sonho, somente perambulo pelo dia e pela noite. Uma sombra.
Temo pela minha sanidade. Pela minha vida. Pela minha família.
Passo os próximos dias em claro. Entre noticiários vinte e quatro horas da TV a cabo e reprises de velhos seriados e velhos filmes. Não consigo dormir. Não me vejo dormindo.
Cair no sono é abrir a porta para o pesadelo.
A estafa acumula. O pesadelo me persegue durante o dia, quando fecho os olhos.
Às vezes não sou capaz de distinguir realidade de ficção.
Vida...
Preciso de ajuda.
Ligo aflito para a Dra. Fabiana, certo dia desses... Não sei ao certo o que digo.
Ela me ouve, e presta atenção a cada palavra.
Mas não me ajuda.
Estou sozinho.
Minha mulher, temendo por toda essa situação, levou nosso filho para a casa de sua mãe. Faz uns dois dias, eu acho. Deixou os números pelos quais posso contatá-la quando isso acabar, ela me diz. Acho que ela vê a sombra da mesma forma que eu. Tenho certeza que ela não me reconhece quando me olha nos olhos. Mesmo nosso filho chora quando me aproximo.
O silêncio é reconfortante.
E estamos apenas nós, nesse cômodo, em perfeita sincronia. Eu e o silêncio.
Eu, minha sombra e o silêncio.
Começo o sétimo copo de café, enquanto a distante voz de um personagem de desenho diz um bordão na sala. Vejo que meus olhos estão mais pesados. Minhas forças estão se esgotando. Se esvaindo.
Minhas mãos tremem. O copo é o primeiro a cair.
Tenho medo. Medo como jamais sentira antes. E antes de perder a consciência, eu sei o que me espera do outro lado. O chão é frio, e um caco de vidro penetra meu abdome. Meu queixo sente a maior parte do impacto, e, a dor lancinante é o que me leva. Devo ter quebrado um dente no processo, ou pelo menos trincado. O barulho indica isso.
Sozinho, perdido, confuso, desesperado. Entre vida e algo mais.

...
Estou em um sanatório. Fazem três dias agora.
Os sonhos pararam de me perturbar.
A doutora Fabiana foi me procurar quando eu desmaiei na cozinha de casa, e, resolveu que seria bom que eu ficasse, afastado por um tempo, em uma espécie de retiro, ela disse. Eu logo entendi que era um sanatório. E achei uma boa idéia.
Aqui não é tão ruim assim quanto se pensa.
As pessoas são bacanas. A comida vem na hora certa. Os remédios me ajudam a dormir.
Finalmente consigo dormir.
E a dor não existe mais.
Inclusive tem um senhor aqui, muito inteligente, foi físico por anos, chegou a freqüentar palestras de Einstein, Fenynman e Bohm. Completou teses e teve diversos trabalhos publicados em revistas científicas internacionais, pelo que me diz. Não sou muito de acompanhar esses trabalhos, e a física nunca esteve em meus campos de interesse. Desde o colégio, a física foi só uma coisa a mais para eu não entender.
Mas aqui eu o ouço. Cada palavra.
Suas explicações, seus fundamentos, são brilhantes.
Me surpreende que tenha parado aqui.
Ele fala sobre uma coisa chamada ‘a teoria das super-cordas’, e como isso substitui as teorias existentes sobre a formação de matéria e partículas. Como o universo é composto por estas ‘cordas’ que, teoricamente constituem as dimensões do plano em que vivemos, e, oscilam como em um violão, por exemplo, gerando o movimento assimétrico dos elétrons em razão dos núcleos de cada partícula. Cada corda oscilando, e cada oscilação representa a movimentação desses elétrons, que são minúsculas partes de cada átomo que são minúsculas partes de cada coisa existente no planeta.
As harmonias diferentes nestas cordas produzem resultados diferentes, similares ou não, e forças fundamentais como a radiação nuclear seja forte ou fraca, o eletromagnetismo, e, até a gravidade. E tudo isso explica a expansão e mudança constante do universo. É como se Deus estivesse tocando em um instrumento gigantesco, compondo a harmonia do universo.
Como o som viaja, e transpõem corpos sólidos, apesar de não se propagar ou dissipar no vácuo. Como ele diz, o vácuo é apenas o aparelho utilizado para afinar as cordas e mantê-las em sincronia, funcionando para compor a sinfonia divina. Impedindo que ajam ecos, e que o som se disperse, se propague para todos cantos e se perca.
Pra que tudo flua de maneira contínua e natural, como o progresso da canção, num crescente contínuo até o final, sem que as notas se misturem e confundam. Pra que o eco de uma nota já tocada não volte e confunda e se misture com uma nota ainda a ser tocada.
Fica uma imagem bonita em minha mente. Deus, em sua infinitissência compondo, movendo e tamborilando os dedos por um gigantesco violão... Ou talvez melhor um piano gigantesco que tem mais cordas... Dando cada nota para a existência e a realidade. Tocando nota por nota.
E eu ouço.
Nesses dias, é tudo que eu faço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário