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10 de abril de 2013

A balada de Leo Faraday


“Que belo aniversário, hein, filhota?”, diz o homem aflito, com o coração despedaçando-se em lágrimas enquanto assiste impotente através do vidro sua única filha sendo submetida a tratamento hospitalar após um dia infernal com sintomas fortes de febre e diarréia. Após primeiros exames na madrugada anterior, os médicos acreditavam que fosse uma simples gripe, e, no primeiro atendimento mais cedo, quando a febre parecia relutante em baixar, os médicos acreditavam que a dengue fosse um diagnóstico mais acurado. Parecia que não.
Agora já estavam supondo algo entre pneumonia e leucemia. Uma enfermeira insensível já passara os últimos vinte minutos preparando os pais para o pior, e isso só fazia com que o casal ficasse ainda mais ansioso e tenso.
Sua esposa Sara não conseguia dizer uma palavra desde que ouvira as piores opções. Seus nervos estavam em frangalhos, e mentalmente ela revisitava os últimos anos de vida, pelo carrossel de emoções e passando por si, dia sim dia também, por todos nove meses da gravidez e os seguintes anos da vida daquela criaturinha minúscula e indefesa que necessita de cuidado e atenção.
Ela podia entender uma gripe, já passou por várias em sua vida, então não era tão assustador. Pneumonia era mais preocupante, claro, mas era a idéia do câncer que a fizera paralisar. Grudou no braço do marido e só se afastava para acender um cigarro a cada vinte, trinta minutos. Leopoldo conseguia manter-se firme, e dialogava de forma coerente e clara com os médicos. Era sua estima que havia o abandonado. Não conseguia esconder o medo ou o desespero, e suas palavras eventualmente transmitiam um pessimismo misturado com fatalismo, mesmo que soubesse que quanto antes fosse detectada uma doença tão grave como as que se supunham, melhores eram as chances de tratamento. O medo é famoso por encobrir a lógica.
A noite eventualmente finda com a criança ainda doente, e o único conforto é que os médicos sabem do que se trata. E o tratamento será longo, árduo e doloroso.
Com os anos, os tratamentos continuam e com um pouco mais de idade, ela já pode receber seções de quimioterapia, e radioterapia. Os médicos alertam que, em alguns anos se os tratamentos não eliminarem a doença, que um transplante de medula óssea seja indicado, e ainda haveria a possibilidade de tratamento com células tronco – que apesar de experimental, tinha pesquisas bastante promissoras sobre a erradicação de células cancerígenas.
Os problemas porém foram se acumulando, ano a ano, novo tratamento a novo tratamento. Tanto Leopoldo quanto Sara possuíam planos de saúde de seus respectivos empregos, e mesmo assim eles se recusavam a cobrir as despesas para tratamentos, como a quimioterapia, e quando os remédios começaram a passar da fração de três casas para uma a mais, com sua quantidade aumentando constantemente. Aos cinco anos a pequena Magdalene consome quatro remédios por dia, com capsulas suficientes para duas semanas.
Leopoldo trabalhava em dobro. Fazia horas extras, fazia bicos surgindo qualquer oportunidade, trabalhando em festas infantis como mascote fantasiado ou garçom como desenvolvendo projetos particulares de engenharia e arquitetura, o que para ele era mais fácil uma vez que já atuava como engenheiro civil numa construtora havia anos. Com um cargo estável, e o salário pago regularmente no dia correto. Por anos foi suficiente para arcar com as despesas da casa, incluindo aluguel e as parcelas do financiamento do carro, sobrando mais que o suficiente para coisas supérfluas e o salário da esposa intacto. Com a intensificação de consultas e tratamentos, Sara precisou abrir mão de seu emprego para cuidar da filha, acompanhar suas visitas médicas, e verificar as necessidades da menina quando eventualmente tem alguma debilidade que requisite uma consulta emergencial. Até tentaram contratar uma enfermeira, e funcionou por um tempo, mas os custos logo se tornaram proibitivos, e as preocupações eram muito mais constantes de que alguma coisa daria terrivelmente errado enquanto estivessem presos no trabalho, e por isso decidiram que sacrifícios seriam feitos. Ela abriu mão do emprego, ele trabalharia mais.
Entre as seções de quimioterapia e os remédios, a menina sofria de fadiga, e era difícil para que ela engordasse e desenvolvesse um físico saudável. Todos os dias a mãe tinha uma constante luta para fazer com que ela comesse uma única refeição que fosse, e após a radioterapia, era comum passar alguns dias sem comer, ou regurgitando logo em seguida.
Com isso a menina passava muito tempo sozinha, brincando em seu quarto sob supervisão constante da mãe – também freqüente companheira de jogos e brincadeiras. Ela aprendeu a ler muito cedo, e nos dias em que sua disposição faltava, já lia algumas peças infantis, e distraía sua mente. Como um presente no último aniversário, ganhara um pequeno videogame portátil e passava horas jogando Tetris, que fascinava sua infante mente enquanto formava linhas com as formas geométricas que surgiam. Em dias bons, pôde conhecer o jardim zoológico ou fazer piqueniques com a mãe no parque florestal municipal. Era raro passear ao ar livre, e era uma experiência memorável sempre que acontecia. A garotinha inclusive se emocionou quando viu a chuva pela primeira vez, achando que eram as lágrimas de Deus, e por mais que tentasse se segurar, a mãe que estava carregando a menina, se esforçou ao máximo para conter o choro até que pelo menos estivesse em casa, sozinha.
Leopoldo compartilhava essa necessidade por pranto, muito mais freqüente porém que a esposa. Como ela passava mais tempo com a filha e a acompanhava em cada seção de tratamento e tinha de segurar firme a mão da menina durante vacinas e injeções, ela havia adquirido uma resistência maior. Ele parecia uma gelatina quando via aquele rostinho triste. Talvez até por isso ficasse o máximo que seu corpo suportava entre turnos e bicos e atividades, voltando para casa tarde da noite para dormir e saindo cedo para começar o dia. Quando em casa gostava de brincar com a filha, assistir alguma comédia com ela na televisão, e com isso ensinou-a a gostar dos Três Patetas. Gargalhava com cada uma das palhoças e trapalhadas do trio, rolando no chão ao lado do pai vendo Larry, Moe e Curly na televisão, mais pela companhia em si que pela diversão das piadas e das bobagens que assistia.
Ela sentia a falta do pai, assim como ele dela.
E ele também sentia que estava falhando como pai. Que falhava ao passar tão pouco tempo em sua companhia... Que deveria... Que precisava fazer mais. E mais do que tudo, que era incrivelmente injusto tudo aquilo pra todos eles. Que era errado.
Uma garota tão doce e meiga, que nunca tivera sequer tempo para pensar em fazer algo de mal em sua breve vida, como ela poderia ser punida com uma doença tão cruel?
Leopoldo pobre homem, estava caminhando sobre areia movediça e sentindo seu corpo sendo puxado cada vez mais, cada mínimo centímetro por um prolongado tempo. O cheque especial raramente era suplantado, assim como o limite do cartão estava já ultrapassado. Cheques para trinta dias, às vezes até noventa para ganhar algum fôlego, e empréstimos e refinanciamentos também eram uma rotina.
Ao menos uma vez a cada seis meses ele estava diante do gerente do banco pedindo para prolongar o último contrato, para conseguir um ou dois meses sem pagar a próxima parcela, ou para que conseguisse liberar um pouco mais de dinheiro para trabalhar.
Depois de anos dessa forma, a fonte finalmente secou. Completamente.
Não havia mais de onde tirar, o que espremer, de que forma mexer pauzinhos e conseguir um centavo extra ou postergar uma parcela que fosse. E pagar as outras prestações em atraso. E pagar as contas que não paravam de chegar. E de aumentar.
Era o limite.
Os bancos já lhe emprestaram mais do que esperavam receber durante o estimado de sua vida. Precisava de outras opções.
Tentou com seu pai, os sogros, o cunhado, amigos próximos, amigos nem tão próximos, vizinhos, colegas de trabalho... E por mais que alguns estivessem dispostos e não pudessem, a grande maioria já o fizera em outras ocasiões e não mais aguardava ver novamente o mínimo valor de volta, e por isso não achavam prudente colaborar mais. Também tinham problemas próprios, diziam, e ele não podia discutir. Entendia bem a situação.
Pediu aos médicos que oferecem descontos, que parcelassem em mais vezes, que trouxessem alternativas menos custosas. Pediu o adiantamento do décimo terceiro do ano seguinte. Pediu hipoteca da casa. Tentou até pedir falência para retomar seu caminho, e nada parecia colaborar.
O mau planejamento financeiro é um inimigo silencioso, e em momentos em que os gastos começam a aumentar sempre sobra cada vez menos. Leopoldo tentou por anos poupar algum valor, desde antes do casamento, mas sempre surgia alguma coisa.
A festa de casamento, a lua de mel na Europa, os custos com viagens nos anos seguintes até o nascimento de Magdalene. O pouco que poupava – que realmente era pouco, haja vista que sempre foi um grande esbanjador – logo se foi também com os móveis e ajustes da casa nova.
Como uma última tentativa, foi até sua concessionária tentar refazer o negócio de seu carro, trocando por um modelo mais velho ou algo que diminuísse as parcelas do veículo, para que sobrasse um tanto a mais por mês. Enquanto esperava, viu um panfleto de uma seguradora, oferecendo planos de seguros de vida com coberturas de até um milhão, e explicando em detalhes no regulamento as condições e valores.
Ele ficou lendo e maquinando em sua cabeça como aquela quantia viria a calhar naquele momento. Nessas horas, o desespero é companhia e o bom senso manda lembranças.
Saiu dali sem conversar com ninguém ou tentar qualquer cálculo e condição. Já tinha uma idéia, pra isso precisava de tempo, sorte e algum tolo planejamento.
Não pretendia discutir com a esposa sobre o projeto, sendo que naquele momento dificilmente mudaria de idéia.
Quanto menos ela soubesse, melhor.
Ele fez uma das apólices, no valor de meio milhão, que ele poderia pagar mensalmente mesmo com todos os compromissos. Ficaria sem almoçar dois ou cinco dias num mês e as mensalidades do seguro estariam pagas.
Para garantir um pouco mais de estabilidade financeira, ele fez um novo empréstimo, para alguém que não se importava com garantias em contratos ou nomes em pedaços de papel.
A máfia normalmente só se importa com as altas taxas de ágio que cobrarão, e se não recebem, bem... Digamos que eles conseguem ser bastante persuasivos.
Algumas pessoas são tolas e oferecem garantias maiores que podem pagar. Outras são estúpidas e se metem com gente grande demais.
Leopoldo tinha a diferença de ter um plano tolo e estúpido.
Era um grupo pequeno de mafiosos locais, um velho cheio de ódio e raiva e que somente era mantido como líder por respeito à sua idade que qualquer outra coisa. Invariavelmente, ele tinha muita sorte também, o que proporcionava que outras facções criminosas fossem pequenas, desorganizadas ou pouco se importassem com o trabalho deles, porém a máfia jamais teve muita força naquela região, e isso era suficiente para que ninguém ou muito poucos se importassem.
E o idoso sr. Fabri conseguisse manter um tênue império de agiotagem principalmente. A cobrança desses serviços feita por capangas cada vez mais ralos, e estúpidos. Hoje eram apenas dois acerebrados que mesmo que quisessem não encontrariam um trabalho diferente. Talvez nem o próprio Fabri, acostumado a um luxo do cargo, obtidos graças ao nome construído pelo pai e quase perdido por sua incompetência. Um homem sem qualquer talento ou tino pra negócios... Com exceção das finanças. Ele sabia administrar bem dinheiro, só tinha dificuldade de consegui-lo, e com o passar do tempo havia cada vez menos. O que um dia fora uma família criminosa durante a ditadura militar, começando na crise petrolífera da década de 70 quando seu pai conseguiu começar contrabandeando gasolina para os postos de todo o estado. E assim nascia uma máfia.
Fabri pai morreu, numa ação policial, e isso era apenas um motivo extra para o poço de raiva, quase sem fim, em que o filho viria a se tornar.
É bem conhecido o que se diz sobre trabalhar com raiva... É melhor não fazê-lo, pode afetar seu juízo, e, como mencionado sobre os negócios da família, ele seguia corredeira a baixo.
Como a vida de Leopoldo.
***
“Eu tenho uma notícia que pode não ser muito agradável, senhor Faraday... E acho que talvez o senhor deva se sentar...” essas são palavras que não importa a condição, serão sempre malvistas. Num consultório médico após uma nova batelada de exames e depois de descobrir que a quimioterapia não estava mais fazendo progresso com a filha, é como sentir uma faca de manteiga penetrando através de seu peito, lenta e agonizantemente, a duras penas.
A mulher estava cuidando da filha em outra sala, e normalmente ficava de fora das más notícias. Ele lidava com os médicos e cobradores, ela cuidava da criança. Era assim que funcionava. Quanto menos ela soubesse, ele pensava. Ele aceitou o café que a secretária se prontificou a trazer.
Ficaram algum tempo sentados olhando um para o outro, certamente desconfortáveis. O médico sabia que todas as esperanças daquele homem estavam voltadas a ele, e ele estava prestes a desapontá-lo.
“Como eu havia informado o senhor recentemente, está acontecendo alguma resistência devido ao tratamento de sua filha. Ele parece não produzir o mesmo efeito... Talvez seu organismo esteja se acostumando ou... Bem, a questão é que não parece mais uma alternativa viável e lógica, apenas um gasto desnecessário de dinheiro. A recomendação como eu sugeri era que nos preparássemos para um transplante de medula óssea, e, de fato parece ser uma solução de fato, se nossa indicação de exames estiver correta”.
Leopoldo toma um gole do café, respira fundo o vapor, tomando um fôlego para perguntar: “Quais minhas alternativas?”.
“Sua mulher não é compatível, e ao que conferimos somente o senhor poderia ser um doador. Sua condição de saúde não está favorável, porém. Pressão alta, colesterol... No ritmo que o senhor está, acreditamos que em breve será nosso paciente também, que nossas simulações fazem crer que o senhor não sobreviveria”.
Leopoldo fica sentado em silêncio por um bom tempo. Ele quer gritar, a plenos pulmões, ele quer chorar, ele quer... Maldição.
Não pôde contar tudo a sua mulher. Seria um desastre ainda maior.
Ele vive completamente alheio ao mundo nos próximos dias... Meses... Sua mente focava demais em suas desgraças pessoais, e em seu plano idiota que cada vez parecia fazer menos sentido. E suas idéias cada vez mais nubladas.
Sua vida não era mais sua. Era apenas uma sombra...
Tinha chegado ao limite, e quando recebeu a visita dos homens de Fabri, mal se lembrava direito do motivo.
“Já esqueceu do dia do pagamento, Faraday?”, disse o maior deles, batendo um taco de baseball de madeira contra a outra mão, de maneira ameaçadora. Era a segunda vez que ele atrasava uma parcela, e, devido aos eventos dos meses passados, estava de fato sem o valor para pagar.
Por isso eles o levaram a um galpão afastado na cidade, que era da propriedade do chefe para uma ‘conversa’.
Enquanto perguntavam do dinheiro e estabeleciam um prazo para o acerto de contas, eles resolveram lhe aplicar uma lição, e com isso sua mão esquerda foi atingida violentamente pelo taco, e, como a radiografia veio a confirmar, quatro ossos quebrados e mais algumas pequenas trincas. Foi difícil explicar-se no plantão hospitalar para escapar sem um inquérito policial, ao menos conseguiu uns dois dias de folga, e pôde curtir a filha. Mesmo com o gesso, era um bom descanso.
E dez dias depois ele recebeu outra visita.
O castigo foi pior, uma concussão na cabeça e repetidas pancadas na região do genital. Vomitou sangue por alguns dias, e mão conseguia se mover ou ficar sentado sem gelo para a área sensível.
Deixaram claro que voltariam em sete dias.
O que está acontecendo? Você não vai me dizer que teve outro acidente no trabalho em tão pouco tempo?”, inquiriu a esposa furiosamente, que se mantivera quieta até o momento, achando que o marido ainda estava sob controle da situação, apesar de sentir que algo estava errado.
Ele pediu um pouco de calma, que ela se sentasse por um instante. E então lhe contou tudo.
Todo o plano, tudo o que estava acontecendo, tudo.
Ela ficou sentada ao lado dele, chocada, segurando forte a mão dele, enquanto olhava estática para o vazio. Sentia uma urgência em recriminá-lo, em gritar o quanto tudo aquilo era idiota. O quanto ele estava sendo egoísta e idiota. E tudo que seu corpo permitiu foram lágrimas a rolar.
Ela estava cansada demais para fazer qualquer coisa.
Ele precisava agir.
Cartas na mesa, era hora do blefe.
Na terceira cobrança, os capangas de Fabri perceberam que a dor física não funcionava com ele. Acabariam por matá-lo sem que ele parecesse se importar o mínimo. Parecia até que queria morrer, por isso optaram por uma abordagem diferente.
Leopoldo ficou aprisionado em um galpão, com um saco preto na cabeça, sem saber quanto tempo estava passando, sem saber o que estava acontecendo. Ouvira o carro saindo, e por mais que tentasse, estava muito bem amarrado, e não era um herói de filme. Jamais escaparia. Teve de ficar ali esperando e rezando para que o pior não acontecesse.
Para que só quisessem lhe dar um susto.
Conversou com um amigo na polícia antes de procurar encrenca com agiotas. Sabia que eles não costumavam aceitar bem suas perdas, então pediu algumas instruções antes de contratar qualquer serviço, e fora avisado que Fabri mantinha os homens sob rédea curta, quando realizando cobranças eram cuidadosos a ponto de usar luvas, fazendo uso de equipamentos como os tacos de baseball. Deixavam o mínimo de evidências e traços incriminadores, o que nunca impediu os anteriores – que agora ou estavam mortos ou na cadeia.
Um carro parou em sua garagem, às seis da manhã, esperando que ele saísse para trabalhar, e com um sorriso presunçoso nos lábios um dos capangas de Fabri fez questão de avisá-lo.
“Se você não estiver com o dinheiro até o fim da semana, sua mulher e filha vão receber uma visitinha bastante amigável nossa, se você entende...”. Eles mostraram algumas fotos, de como fora fácil invadir a casa sem que percebessem sua presença.
Nenhuma das pancadas doeu tanto quanto o pensamento do que aqueles animais fariam com sua menina e sua querida esposa se seu plano desse errado.
Preparou-se para os instantes finais.
Revisou os detalhes, e passou uma calma noite em casa na quarta-feira. Brincou com a filha até que ela fosse dormir, quando lhe deu um forte abraço, daqueles típicos de despedidas. Ela sorria, sem notar os olhos vermelhos do pai, lacrimejantes.
Conversou com a esposa e ficou ao seu lado na cama até que ela também adormecesse. Ele porém estava elétrico, e não conseguia pregar os olhos. Foi até sua escrivaninha e rabiscou algumas coisas. Leu um pouco, e mal pôde perceber quando o sono lhe acometeu.
Acordou bastante cedo, antes dos primeiros brilhos do sol, e deu um beijo na testa de cada uma das mulheres de sua vida.
Deixou um recado pra esposa, e partiu.
Avisou aos capangas que estaria com todo o dinheiro de Fabri, suficiente para quitar a dívida toda, no escritório onde os pagaria depois do expediente, uma vez que estaria realizando horas extras, e o lugar ficava bastante vazio, perfeito para tal transação. Não haviam câmeras de segurança ou qualquer outra coisa que pudesse comprometer a operação dos dois.
Concordaram de pronto.
Chegaram às nove, escritório vazio, nem mesmo o vigilante estava em seu posto – era o exato momento da troca de turnos, e estava por trocar de roupas para partir. Subiram até a área da engenharia sem serem incomodados.
Era um prédio antigo, e pequeno com um único elevador, talvez oito ou nove andares, sendo dois da empresa de construção civil para qual Leopoldo trabalhava. Um para engenheiros, arquitetos e projetistas, outro para equipes de campos e equipamentos.
Leopoldo estava rezando conforme os minutos passavam, enquanto esperava que chegassem. Rezando que as coisas dessem certo, que não falhassem agora.
Ainda sentia dores, e o braço continuava engessado. Precisaria de toda sua sorte para chegar ao final da noite.
“Onde está a grana, Faraday?” disseram ruidosamente conforme entravam no escritório, sem se importar se haveria mais alguém. Confiaram em seu relato de que não haveria, e, é verdade, não havia.
Leopoldo estava em pé, há considerável distância do elevador, levantou seu braço bom, segurando uma velha pasta, e sem dizer uma palavra colocou-a sobre sua mesa.
E com um rápido movimento.
BLAM.
Um disparo seco, rápido e certeiro derrubou um dos capangas ao atingi-lo na cabeça. Fazia tempo que ele não usava um revólver, talvez desde o serviço militar, talvez antes. Em sua oração havia pedido que sua pontaria não falhasse, e que tivesse tempo suficiente para o que viria a seguir.
“SOCORRO, SOCORRO! UM ASSALTO”, gritou mirando a janela, pedindo atenção, sem perder de vista o outro capanga que se moveu para trás de uma escrivaninha, puxando sua pistola do coldre. “Quando eu te pegar, Faraday, você vai desejar não ter nascido”.
“Eu já desejo”, sussurrou Leopoldo aproximando-se do interfone, que ficava apenas alguns passos de onde estava. Puxou o mesmo para contatar o porteiro, e jogou com força ao chão parte do equipamento para que produzisse ruído. Para parecer que era um defeito. Ouvindo os gritos, os disparos e parte do que estava acontecendo, o segurança chamou a polícia.
Conhecendo bem o escritório, ele tinha uma vantagem enorme sobre o capanga, mesmo que o segundo fosse mais jovem, estivesse com bom condicionamento físico e tivesse passado por situações semelhantes antes. Era até comum que algum espertinho resolvesse puxar uma arma contra eles. A diferença é que Faraday tinha conseguido atingir um dos dois.
A polícia chegou e logo reconheceu o veículo dos homens de Fabri, e os primeiro homens na cena já sabiam qual o próximo passo a tomar. Uma equipe ficaria no térreo esperando qualquer tipo de ação enquanto a outra subiria. Com cuidado, passos calculados e silenciosos pelas escadas para aproveitar o efeito surpresa.
Leopoldo é atingido, pelas costas, enquanto tenta escapar. Um tiro limpo, atravessando o corpo todo, passando pelo intestino. O sangue começa a empoçar logo.
Sua sorte acabou, seu merdinha”, diz o capanga se aproximando sem ver exatamente onde Leopoldo estava caído.
BLAM.
Não demora muito para a polícia chegar ao andar e encontrar dois cadáveres.
E um terceiro homem morrendo devagar
Com uma bala abaixo da última costela.
Hemorragia lenta.
Respiração pesada.
Dois carros policiais logo chegam à casa de Fabri, para descobrir que ele, ouvindo a freqüência de rádio da polícia, logo tirou a própria vida, que como o covarde que é... Preferia morrer a passar o resto da vida na cadeia.
As luzes vermelhas e azuis brilhavam pintando uma noite escura e sem lua, numa cidade fria que não se importava.
A balada de Leo Faraday

A ambulância chega em tempo de encontrar Leopoldo Faraday ainda vivo, mas sem condições de sobrevivência. A hemorragia já estava em um nível perigoso, e, enquanto ainda estava consciente pediu que executassem a cirurgia que salvaria a filha, autorizando todo e qualquer uso de seus órgãos caso deixasse a existência na mesa de cirurgia. Quase como se tivesse planejado isso.
Com sua morte salvando o escritório de um assalto (ao menos o que a versão oficial que chegou aos jornais), Leopoldo estava coberto por uma apólice trabalhista que garantiu a sua mulher o pagamento de uma pensão, com o valor integral do salário, sem as deduções do empréstimo feito junto ao banco, quitado em virtude de um seguro da operação como garantia, e somado a isso ainda havia a apólice de seguro de vida de meio milhão paga, sem muita delonga, devido a um pequeno auxílio do amigo policial, como um último pedido feito por Leopoldo para ajudar na investigação que desajeitadamente entregou numa bandeja a cabeça de Fabri, assim como colocou fim na operação criminosa da família.
Somente anos mais tarde Sara encontrou o testamento do marido, escrito horas antes do acontecido, no qual explicava um pouco melhor suas motivações e planos para a filha. Escondera conveniente numa cópia de “Os três mosqueteiros” que comprara em sua viagem à França com a esposa, e guardava para presentear a filha, uma edição que continha o texto em dois idiomas, francês e português, e, por este motivo tinha o texto entrecortado por colunas. De forma curiosa, a primeira aparição do famoso lema dos mosqueteiros aparecia cortado, numa página ímpar, escrito “Um por todos,...” e a continuação no verso. Leopoldo sempre achara aquilo peculiar, e resolvera guardar seu pequeno texto dobrado envolvendo essas duas páginas.
Ela desapareceu com o texto, para que a filha jamais o encontrasse, e até seu aniversário de vinte e sete, ela ainda não descobriu.

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