“Esse apartamento está uma bagunça”. É a
primeira coisa que penso, ao chegar da rua depois de um dia frustrante e
cansativo. Minha mente viaja por breves instantes, enquanto retiro a chave da
porta e a coloco ritualmente numa bombonière horrível que se tornou o porta
chaves da casa. Eu olho para a quantidade descomunal de revistas e livros
empilhados sobre a mesa da sala, os recortes de artigos espalhados no sofá e
outros móveis – até o meu quarto – e as pilhas de tentativas do manuscrito de
minha tese colocadas ao lado do rack da tevê da sala. Mesmo da porta do
apartamento eu vejo as dezenas de marcas vermelhas feitas pelo meu editor para
a revisão de minha pesquisa. O amarelo de canetas marca texto também me
persegue, quase brilhando no escuro num fulgor sinistro.
Ainda estou em pé, retirando os sapatos,
como outra tradição adquirida, e caminho só de meias até a cozinha. “Esse
apartamento está uma bagunça”, surge novamente na minha mente enquanto procuro
na geladeira por um pedaço de pizza de ontem. Acabo desistindo, faço apenas um
café forte, para me sentar um instante na sala e planejar minha noite.
Tenho muito trabalho pela frente, e meu
prazo se apertando. Na verdade, meu prazo foi diminuído duas vezes já. A data
limite era outubro, para lançarem no começo do ano que vem. Estou trabalhando
agora com o prazo limite de março, para lançarem até o dia das mães. Desse ano.
Não sei exatamente o motivo da data do
dia das mães. Para ser exato, nem mesmo porque diminuíram tanto meu prazo. Sei
que o assunto da minha pesquisa ficou em voga devido a algumas notícias
publicadas nos jornais, assim como matérias e programas dedicados ao assunto,
incluindo entrevistas a programas jornalísticos dos quais eu inclusive
participei. Acredito que a única justificativa que exista para a diminuição de
prazo seja a de aproveitar minha recente exposição midiática, e nem posso
reclamar. Consegui boas ofertas de trabalho como professor, ótimas palestras e
exposições, e com o livro já existe a perspectiva de um aumento substancial
para minha conta.
Outra noite de trabalho para acomodar as
necessidades editoriais, e quase que numa brincadeira, eu olho as páginas
revisadas do trabalho dizendo “Esse artigo está uma bagunça”, com aquela
vozinha suave, doce e delicada que parecia tocar meus ouvidos como veludo, e eu
podia sentir meus pelos se eriçando em reação... Uma verdadeira confusão
sinestésica enquanto meu corpo parece reconhecer a presença de Estela ali,
naquele exato instante ao meu lado, falando comigo.
Fecho os olhos pesadamente, coço as
pálpebras com as palmas das mãos e ainda com os olhos fechados conto até dez. É
só o estresse, repito para mim mesmo por alguns instantes. Mas a verdade é que
venho pensando demais nela ultimamente, e sinto de verdade muito a sua falta.
Sem querer parecer piegas ou clichê, mas a
verdade é que minha vida só fez sentido exatamente no breve período que
compartilhamos algo. Mais precisamente nos dois anos e sete meses em que
estivemos juntos.
Ela apareceu meio que do nada. Uma aluna
de biologia desenvolvendo sua tese sobre temperaturas extremas e como isso
afeta a condição de subsistência de microrganismos. Ou alguma coisa do tipo.
Biologia para ela era uma segunda língua nativa, e pra mim é como grego. E eu
não falo grego. Mas era empolgante ver toda a paixão e devoção com que ela
falava de seus tópicos, mesmo que eu não entendesse metade. E logo quando a
conheci, durante o horário de almoço, me perguntando um tanto encabulada se eu
sabia de algum imóvel para alugar, a conversa fluiu naturalmente para que
explanasse prolongadamente sobre sua pesquisa até o momento, sua vida pregressa
– de sua cidade natal, da família, de morar longe deles pela primeira vez – que
ao final éramos como velhos conhecidos, grandes amigos.
Ah, e porque ela me procurou? Porque ela
estava procurando um apartamento, e como política do campus existem alojamentos
e apartamentos próximos que são cadastrados como referências para novos alunos,
e havia um apartamento vago no mesmo prédio que eu morava – uma pocilga, que eu
ainda tinha que dividir com um sujeito estranho, aluno de filosofia que adorava
reunir seus amigos para tocar violão e fumar maconha, até altas horas da
madrugada, toda segunda feira (e não, eu não entendi até hoje porque ele fazia
isso toda segunda-feira) – então ela me pediu recomendações.
E foi assim que nós começamos a nos ver.
Ela morava perto, e eu era uma das poucas referências que ela tinha na cidade,
e conforme fui apresentando a cidade para ela, fomos nos conhecendo, e nosso
relacionamento se construindo.
O telefone toca e me traz de volta a
realidade. Meu editor pergunta como andam as revisões e se eu já recebera a
versão mais atual das modificações pedidas pela editora. Ele é uma raposa
ardilosa, sempre rindo e fazendo parecer que tudo está ótimo, e cada vez me
enfiando mais no buraco com propostas terríveis. Sempre com um sorriso no
rosto, e um aperto de mão firme.
Na verdade, Tomas é um cara legal. Ele
se esforça bastante e realmente conseguiu um acordo bacana pro meu livro. A
editora da universidade não me daria um puto por ele.
Só a verba do adiantamento – conseguido
em parte pela exaustiva batalha para redução de data de entrega dos originais –
já me valeu o dinheiro para quitar esse apartamento em que estou morando. E ele
é bastante educado e tranqüilo. Mesmo quando eu atrasei – na primeira
publicação, que era para uma revista da editora que ele trabalha, e inclusive
perdi o prazo para a publicação – ele não fez nenhum pressão ou cobrança
diferente do normal. Sempre aquela ligação típica e desinteressada, como de um
amigo. “E aí, como vai o meu garoto?”, ele começava, paternalmente. Tomas não é
mais que três anos mais velho que eu, e mesmo assim se dirige a mim como se eu
fosse seu filho. Até acho que ele se preocupa genuinamente comigo dessa forma.
Aquela preocupação de que eu não tenha um trabalho de verdade ou algo do tipo,
por ser apenas um ‘pesquisador/escritor’.
Ainda assim a fala mansa dificulta a
minha capacidade de dizer não.
E ele sabe disso.
“Eu preciso de um favor”. Sempre, depois
de alguns minutos de conversa fiada, de um diálogo inconstante, ele me dizia as
palavras que definitivamente ele devia trazer em seu cartão de visitas. “Tomas
Oliveira - Eu preciso de um favor”.
Eles precisava de uma versão parcial do
livro, com todos os capítulos, mesmo que não finalizado, mesmo que faltando
algum conteúdo, entregue até o final da semana. Na sexta, até o meio dia. Até
mandariam um motoboy buscar o material impresso – ah, tinha de ser impresso. E
ele me pede isso às sete e meia da noite da terça.
Não é como se faltasse tanta coisa
assim, na verdade... É mais pela chateação. A cada versão existe uma nova
revisão que solicita um texto mais didático, um material mais elaborado,
algumas páginas com melhores ilustrações ou mapas, fazer com que o material
seja um pouco mais descontraído num trecho e mais dinâmico em outro sem perder
o teor técnico e científico. A banca de meu doutorado me cobrou menos.
Assim que desligo o telefone, parto para
a cozinha e procuro alguma coisa para comer. Depois de achar a pizza que
procurei antes, ligo o computador para começar minha jornada de revisões.
Aproveito para abrir uma lata de
refrigerante, enquanto como a fatia de pizza gelada, deixando o computador em
alguma sub rotina para otimização da máquina, enquanto confiro se todos os
arquivos que precisarei estão na máquina ou apenas em backups. E sem mais
enrolação, parto pra um banho relaxante. Estou precisando disso.
Sempre me lembro de uma história
engraçada sobre Estela quando me preparo para o banho. Quer dizer, pelo menos
eu acho engraçada. Ela sempre reclamou da minha bagunça, sempre e a todo
momento eu ouvia que meu apartamento é uma bagunça, inclusive foi a primeira
coisa que ela disse quando entrou no meu apartamento, quando nos conhecemos, e
novamente quando mudamos para um apartamento nosso.
Parece toda uma vida que passamos
juntos, e do jeito que eu lembro, faz até parecer que foi há uma vida... Enfim,
ela tinha uma mania, que eu achava peculiar, e que ela sempre tentava
justificar com uma expressão constrangida, o rosto corado, como de criança que
flagrada fazendo arte.
Toda vez que ela tomava banho ela
costumava lavar suas roupas íntimas também durante o banho – ainda que ela
colocaria esta mesma roupa na lavadora, com amaciante e demais produtos de
limpeza. O detalhe é que, terminado seu banho, ela colocava as peças recém
lavadas na válvula do chuveiro, como se fosse um varal, indefinidamente, ou até
a próxima rodada de uso da lavadora de roupas. Uma vez inclusive fiz o teste, e
fiquei observando a pilha de peças íntimas se acumulando sobre a válvula.
Numa ocasião, conseguiu uns quinze dias
de férias no que aproveitou para matar a saudade dos pais, e foi passar com
eles uns dias. As coisas tiveram de ser ajeitadas muito rápido pra sua folga
que ela me ligou no serviço avisando e perguntando se eu conseguiria
acompanhá-la. Dadas as circunstâncias, não foi possível. Estava muito em cima
da hora, meu emprego da época dependia de cumprimento de prazos urgentíssimos
que estavam longe de seu cumprimento... Nem hesitei em pedir pro meu chefe – só
pra ouvir um não.
Chegando em casa naquela noite, ela já
tinha partido. Deixou uns recadinhos na geladeira, com as datas das próximas
contas, alguns números de telefone para entrar em contato com ela, e um
bilhetinho dizendo que a geladeira estava bagunçada, que ela queria que eu
arrumasse. Haviam outros similares na sala e no quarto, ao que confesso que na
época a casa era muito mais ordenada que hoje... Tinha muito menos livros,
papéis e coisas espalhadas.
Lembro que fui tirando os post-its que
ela deixou e colocando a maioria das coisas no lugar pelo caminho que passava.
Já em meu quarto, me preparo para o
banho quando vejo um pequeno papel grudado no criado mudo, que eu
peremptoriamente ignoro.
Depois do banho leio atentamente o
recado. “Favor não colocar minhas calcinhas na máquina até eu voltar”.
Nunca cheguei a perguntar exatamente
porque ela esperava que eu deixasse suas calcinhas na válvula por quinze dias
até seu regresso, e me perguntei um bocado de vezes sobre o assunto. Até
confidenciei a um velho amigo, pedindo sua opinião – a de alguém que conhecia
muito bem ao casal, e que não trairia minha confiança de dividir com ele a
história. Por mais compreensivo que fosse, falhou tanto quanto eu em compreender
a lógica que acompanhava tal pedido.
Aqueles pequenos mistérios do universo,
eu pensava toda vez que chegava ao apartamento e olhava para as roupas íntimas
de Estela na válvula do chuveiro. E quando ela voltou, só me lembro de sua
expressão de assombro, como se eu tivesse profanado a Monalisa rabiscando
pintos com tinta vermelha ao redor do rosto da mulher (como que para justificar
seu sorriso enigmático com uma piada infantil). Mas ela não disse nada também.
E o tempo foi passando sem ninguém
mencionar o fato jamais.
Só continua a me
causar risos.
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