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22 de maio de 2013

A dança do fim do mundo


Assim como o cigarro entre seus dedos, ele notou que sua vida estava diminuindo, instante a instante, sendo reduzida a cinzas, pouco a pouco. Era um sentimento estranho, curioso e único o de entender a concepção do próprio fim com tamanha serenidade e maturidade.
O ponto é que ele não parecia o único a experimentar tais sentimentos naquela noite.
Naquele pequeno bar aberto, com mesas espalhadas por um calçadão localizado bem em frente ao mesmo, mais ou menos umas trinta, talvez quarenta mesas montadas para servir, cada qual no mínimo duas pessoas, mas algumas com lotação ainda maiores, seis ou oito pessoas.
Onde havia animação e diversão e conversas empolgadas com um pano de fundo de música acústica reproduzida em caixas de som plásticas instaladas estrategicamente pelo bar para que todos pudessem ouvir, e não muito alto para ninguém, muito menos aos vizinhos, agora havia um silêncio quase constrangedor. O som havia parado nas caixas, e, nem clientes ou donos fizeram qualquer sinal de reclamação.
Serenidade.
Pela primeira vez, em tantos anos, era possível ouvir claramente o som da respiração das pessoas, ou as chamas do cigarro consumindo o filtro.
Do silêncio surgiu ação.
Involuntária, confusa a princípio.
Uma mulher levantou seu braço direito, apontando alto como podia aos céus, e com suavidade e graça ensaiou seus primeiros passos. Logo, sem qualquer ligação ou planejamento, outros também fizeram o mesmo, de mesas diferentes e em direções diferentes, de sexos diferentes. Cada um fazendo seus passos e movimentos.
Um soturno balé sincronizado com sombras e silêncio.
O fogo chegou a seus dedos e o choque lhe acordou e despertou do transe.
Todos ao seu redor estavam em pé, fossem clientes, fossem garçons, os donos e até transeuntes e moradores de rua que estavam nas vicinais.
Cada um estabelecendo posição e movimento com graciosidade tamanha de uma companhia russa de balé.
Tudo sem som.
Todos sem ensaiar ou se conhecer.
Ou combinar.
Ele compreendia o que estava acontecendo, de uma perspectiva louca e confusa, que lhe acometera instantes antes, enquanto tragava seu cigarro e sua mente viajava por um complexo sistema galáctico. Parecia uma transmissão telepática distribuída para explicar os momentos finais que se aproximavam. O fim que se aproximava.
Não... Não era isso.
Havia um som, é verdade, um distante som ecoando pelos espaços vazios longínquos e chegando cada vez mais baixo.
Um alarme ressoando e tocando e repetindo incontáveis vezes.
O soar das trombetas.
O arauto da destruição iminente.
Pânico foi sua primeira reação. Procurou as chaves do carro, pensou onde estava estacionado e o que... Pensou no que... Entrou em desespero, sem saber como reagir ou agir. Só sabia que precisava correr dali, o mais longe.
O telefone! Claro, precisava ligar para sua namorada... Ficou de encontrá-la ali, e era justamente o que estava fazendo antes... Esperando que ela chegasse...
Sem sinal.
Nenhuma barrinha indicando qualquer margem para comunicação.
Não havia ligações perdidas, recados ou mensagens telefônicas.
O que não chegava a ser preocupante, dadas as circunstâncias.
As pessoas continuavam a dançar ao seu redor, calmas e pacíficas como não via, ou melhor, nunca vira nada igual em toda sua vida.
O carro demorou a dar partida, e ele já sinalizava um defeito em seu funcionamento, com os faróis mais fracos que de costume, piscando até que a lanterna esquerda apagasse completamente. Curiosamente, o rádio ligara instantaneamente.
“...cia para todas as estações. ***estática*** não é um teste ou treinamento. Repetimos que *** estática ***. É aconselhável que todos permaneçam *** estática ***. Selem portas e janelas e aguardem por notícias. Os reparos na instalação militar industrial de Santo Antonio Abate estão em curso, não há motivo para pânico. Repetimos ***estática *** há motivo para pânico”.
A mensagem era repetida continuamente, com algumas pequenas alterações, como a estática interferindo em outros trechos, e, em algumas das repetições do comunicado ele trazia mais detalhes, informando que devido a uma complicação na instalação militar de pesquisas localizada entre trinta e quarenta quilômetros na região rural do município, durante a execução de um teste – do qual pouquíssimo se falava, com exceção de que era algo bastante seguro e controlado – apesar da falha que ocorreu, é claro. Havia uma menção a vazamento ou algo do tipo, mas nunca estava extremamente claro de que tipo de vazamento exatamente, até porque nunca foi exatamente claro que tipo de material o complexo trabalhava.
E o que isso tinha com as pessoas todas dançando e... Toda aquela dificuldade de manter um pensamento coerente?
A iluminação pública começava a falhar. Os postes piscavam, oscilando bastante, e, enquanto ele perambulava com o carro, parte procurando pela namorada, parte olhando ao redor para ver o que estava acontecendo, e, principalmente pensando no que fazer a seguir. Voltar para casa e fechar as portas como o aviso dizia ou correr o mais longe que pudesse? Procurar a namorada até que a encontrasse ou deduzir que ela ainda estava em sua casa, ouviu o comunicado e sequer saiu? Achar um telefone para entrar em contato com ela?
Dirigia devagar, olhando pelas ruas, olhando para o celular procurando sinal, sentindo um peso enorme em sua cabeça. Com a luz escassa, era difícil enxergar qualquer coisa, e sua mente fora do estado normal, assustava-se com o que via. Os vultos na escuridão, os riscos negros a passar correndo diante da luz de seu veículo. Sentia-se como bêbado... Como que acordando de um pesadelo febril... Sua mente estava nublada e obscura. Seu corpo cansado. Cansado somente por se manter acordado.
“Não há motivo para pânico” e a mensagem simplesmente cessou com um ruído estrondoso e uma estática constante que se seguiu.
Logo veio um clarão no céu. Uma lua com um estranho brilho ametista reluzia solitária em meio ao negrume celeste e um blecaute acidental causava um tenebroso cenário.
Ninguém se abalou. Ainda dançavam.
O carro morreu, subitamente. Ele passava a ter dores de cabeça ainda mais fortes, e logo percebeu que sangue estava a sair por suas narinas. Pouco. Uma gota a princípio.
Com o carro parado, pegou tudo o que pôde ou que valia a pena levar do veículo, e saiu, sem se importar em deixar o veículo para trás.
Procurou algo para tapar o nariz, e tudo que conseguiu foi uma embalagem de cigarros, e lembrou de sua namorada. Na verdade, lembrou com certo sarcasmo do quanto ela reclamava de seu hábito, que eventualmente seria a causa de sua morte. Ele sempre respondia que eventualmente, alguma coisa já mataria, porque não o cigarro?
Através das janelas havia sinal de vida, com luzes refletindo e piscando sem intensidade no interior das casas. O medo deles era palpável.
Estava sem rumo, cansado, alquebrado e confuso, e notava que seu nariz sangrava cada vez mais, assim como a dor de cabeça acentuava.
Andava devagar, pé ante pé, calmo e observador.
As ruas estavam desérticas, e pessimamente iluminadas, somente com a grande lua cheia ao céu para servir como norte – e a mancha avermelhada no outro sentido para servir como zênite.
Ocasionalmente encontrava algumas pessoas, mas eles pareciam não notá-lo, como antes, quando deixara o bar. A maioria que encontrou estava dançando, exceto aqueles incapazes de se movimentar, fosse pelo cansaço, fosse pela inabilidade natural, fosse pelo que fosse. Estes cantavam, melodias alegres e se aqueciam diante de fogueiras compartilhadas amistosamente, com pouco de comida e bebida sendo distribuída.
Nesses grupos de cantores era comum ver algum cão também ‘cantando’, enquanto tentava acompanhar o tom dos demais, e recebendo o mesmo tratamento alimentar.
Raras vezes notou alguns casais, alguns grupos maiores, vários deles nus, beijando-se, esfregando-se... Entregando-se a prazeres corpóreos, sem se importar com qualquer coisa mais.
Ele seguia imune e isento a tudo isso.
O nariz continuava a sangrar.
A cabeça continuava a doer, como que zunindo, com um apito constante e agudo.
Estava cansado, precisava repousar por um instante. Só queria sentar em seu sofá, colocar um pouco de água gelada sobre o rosto, torcia para haver eletricidade, ao menos um pouco em sua casa. Ou que tivesse sinal telefônico.
Demorou um tempo para chegar a seu prédio.
Tudo apagado, e, a trava elétrica fazia com que a entrada fosse impossível.
Pensou em usar a entrada do estacionamento – que dependia de chave – somente para notar que havia uma barricada ao redor desta, e seria simplesmente impossível atravessar.
Ainda mais quando viu o brilho de um revólver naquele breu todo, e ouviu algumas nada amigáveis palavras de uma pessoa ali próxima ao portão.
Instintivamente andou na direção contrária, voltando para a rua.
Sentiu um formigamento no braço, o peito também doía um pouco.
Fechou os olhos por um instante e procurou um lugar confortável para se sentar.
Sentou-se na guia da calçada.
Respirou fundo.
Respirou de novo.
Tossiu algumas vezes. Sem perceber adormeceu.
Então ouviu gritos, tiros e então mais gritos, sem saber ao certo de onde, e acordou assustado..
Conseguiu ouvir um ruído de estática de rádios ligados nas proximidades, e pôde notar estalos vindos da direção da porta elétrica de abertura do prédio.
A eletricidade voltava a funcionar.
Sentiu seu bolso tremendo. Era o telefone.
“As autoridades estão aconselhando as pessoas a ficarem em suas casas, com janelas trancadas devido a um vazamento químico – ou algo do tipo. Espero que esteja bem. Um beijão, mor, te amo”.
Ela escreveu calma e pausadamente para que ele recebesse toda a mensagem.
Enviou o texto antes mesmo que ele saísse de sua própria casa.
Só conseguiu ler as últimas palavras, com um sorriso largo nos lábios.
Seus olhos congelaram olhando para a pequena tela do telefone. Seu corpo inerte ficou ali pelo restante da noite, talvez mais que isso.
O mundo seguiu em frente, ocupado demais para dançar ou estranhar o que acontecera na noite anterior.

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