Assim como o cigarro entre seus dedos, ele notou que sua vida estava diminuindo,
instante a instante, sendo reduzida a cinzas, pouco a pouco. Era um sentimento
estranho, curioso e único o de entender a concepção do próprio fim com tamanha
serenidade e maturidade.
O ponto é que ele não parecia o único a experimentar tais sentimentos
naquela noite.
Naquele pequeno bar aberto, com mesas espalhadas por um calçadão
localizado bem em frente ao mesmo, mais ou menos umas trinta, talvez quarenta
mesas montadas para servir, cada qual no mínimo duas pessoas, mas algumas com
lotação ainda maiores, seis ou oito pessoas.
Onde havia animação e diversão e conversas empolgadas com um pano de
fundo de música acústica reproduzida em caixas de som plásticas instaladas
estrategicamente pelo bar para que todos pudessem ouvir, e não muito alto para
ninguém, muito menos aos vizinhos, agora havia um silêncio quase constrangedor.
O som havia parado nas caixas, e, nem clientes ou donos fizeram qualquer sinal
de reclamação.
Serenidade.
Pela primeira vez, em tantos anos, era possível ouvir claramente o som
da respiração das pessoas, ou as chamas do cigarro consumindo o filtro.
Do silêncio surgiu ação.
Involuntária, confusa a princípio.
Uma mulher levantou seu braço direito, apontando alto como podia aos
céus, e com suavidade e graça ensaiou seus primeiros passos. Logo, sem qualquer
ligação ou planejamento, outros também fizeram o mesmo, de mesas diferentes e
em direções diferentes, de sexos diferentes. Cada um fazendo seus passos e
movimentos.
Um soturno balé sincronizado com sombras e silêncio.
O fogo chegou a seus dedos e o choque lhe acordou e despertou do
transe.
Todos ao seu redor estavam em pé, fossem clientes, fossem garçons, os
donos e até transeuntes e moradores de rua que estavam nas vicinais.
Cada um estabelecendo posição e movimento com graciosidade tamanha de
uma companhia russa de balé.
Tudo sem som.
Todos sem ensaiar ou se conhecer.
Ou combinar.
Ele compreendia o que estava acontecendo, de uma perspectiva louca e
confusa, que lhe acometera instantes antes, enquanto tragava seu cigarro e sua
mente viajava por um complexo sistema galáctico. Parecia uma transmissão
telepática distribuída para explicar os momentos finais que se aproximavam. O
fim que se aproximava.
Não... Não era isso.
Havia um som, é verdade, um distante som ecoando pelos espaços vazios
longínquos e chegando cada vez mais baixo.
Um alarme ressoando e tocando e repetindo incontáveis vezes.
O soar das trombetas.
O arauto da destruição iminente.
Pânico foi sua primeira reação. Procurou as chaves do carro, pensou
onde estava estacionado e o que... Pensou no que... Entrou em desespero, sem
saber como reagir ou agir. Só sabia que precisava correr dali, o mais longe.
O telefone! Claro, precisava ligar para sua namorada... Ficou de
encontrá-la ali, e era justamente o que estava fazendo antes... Esperando que
ela chegasse...
Sem sinal.
Nenhuma barrinha indicando qualquer margem para comunicação.
Não havia ligações perdidas, recados ou mensagens telefônicas.
O que não chegava a ser preocupante, dadas as circunstâncias.
As pessoas continuavam a dançar ao seu redor, calmas e pacíficas como
não via, ou melhor, nunca vira nada igual em toda sua vida.
O carro demorou a dar partida, e ele já sinalizava um defeito em seu
funcionamento, com os faróis mais fracos que de costume, piscando até que a
lanterna esquerda apagasse completamente. Curiosamente, o rádio ligara
instantaneamente.
“...cia para todas as estações. ***estática*** não é um teste ou
treinamento. Repetimos que *** estática ***. É aconselhável que todos
permaneçam *** estática ***. Selem portas e janelas e aguardem por notícias. Os
reparos na instalação militar industrial de Santo Antonio Abate estão em curso,
não há motivo para pânico. Repetimos ***estática *** há motivo para pânico”.
A mensagem era repetida continuamente, com algumas pequenas alterações,
como a estática interferindo em outros trechos, e, em algumas das repetições do
comunicado ele trazia mais detalhes, informando que devido a uma complicação na
instalação militar de pesquisas localizada entre trinta e quarenta quilômetros
na região rural do município, durante a execução de um teste – do qual
pouquíssimo se falava, com exceção de que era algo bastante seguro e controlado
– apesar da falha que ocorreu, é claro. Havia uma menção a vazamento ou algo do
tipo, mas nunca estava extremamente claro de que tipo de vazamento exatamente,
até porque nunca foi exatamente claro que tipo de material o complexo
trabalhava.
E o que isso tinha com as pessoas todas dançando e... Toda aquela
dificuldade de manter um pensamento coerente?
A iluminação pública começava a falhar. Os postes piscavam, oscilando bastante,
e, enquanto ele perambulava com o carro, parte procurando pela namorada, parte
olhando ao redor para ver o que estava acontecendo, e, principalmente pensando
no que fazer a seguir. Voltar para casa e fechar as portas como o aviso dizia
ou correr o mais longe que pudesse? Procurar a namorada até que a encontrasse
ou deduzir que ela ainda estava em sua casa, ouviu o comunicado e sequer saiu?
Achar um telefone para entrar em contato com ela?
Dirigia devagar, olhando pelas ruas, olhando para o celular procurando
sinal, sentindo um peso enorme em sua cabeça. Com a luz escassa, era difícil
enxergar qualquer coisa, e sua mente fora do estado normal, assustava-se com o
que via. Os vultos na escuridão, os riscos negros a passar correndo diante da
luz de seu veículo. Sentia-se como bêbado... Como que acordando de um pesadelo
febril... Sua mente estava nublada e obscura. Seu corpo cansado. Cansado somente
por se manter acordado.
“Não há motivo para pânico” e a mensagem simplesmente cessou com um
ruído estrondoso e uma estática constante que se seguiu.
Logo veio um clarão no céu. Uma lua com um estranho brilho ametista
reluzia solitária em meio ao negrume celeste e um blecaute acidental causava um
tenebroso cenário.
Ninguém se abalou. Ainda dançavam.
O carro morreu, subitamente. Ele passava a ter dores de cabeça ainda
mais fortes, e logo percebeu que sangue estava a sair por suas narinas. Pouco.
Uma gota a princípio.
Com o carro parado, pegou tudo o que pôde ou que valia a pena levar do
veículo, e saiu, sem se importar em deixar o veículo para trás.
Procurou algo para tapar o nariz, e tudo que conseguiu foi uma embalagem
de cigarros, e lembrou de sua namorada. Na verdade, lembrou com certo sarcasmo
do quanto ela reclamava de seu hábito, que eventualmente seria a causa de sua
morte. Ele sempre respondia que eventualmente, alguma coisa já mataria, porque
não o cigarro?
Através das janelas havia sinal de vida, com luzes refletindo e
piscando sem intensidade no interior das casas. O medo deles era palpável.
Estava sem rumo, cansado, alquebrado e confuso, e notava que seu nariz
sangrava cada vez mais, assim como a dor de cabeça acentuava.
Andava devagar, pé ante pé, calmo e observador.
As ruas estavam desérticas, e pessimamente iluminadas, somente com a
grande lua cheia ao céu para servir como norte – e a mancha avermelhada no
outro sentido para servir como zênite.
Ocasionalmente encontrava algumas pessoas, mas eles pareciam não
notá-lo, como antes, quando deixara o bar. A maioria que encontrou estava
dançando, exceto aqueles incapazes de se movimentar, fosse pelo cansaço, fosse
pela inabilidade natural, fosse pelo que fosse. Estes cantavam, melodias
alegres e se aqueciam diante de fogueiras compartilhadas amistosamente, com
pouco de comida e bebida sendo distribuída.
Nesses grupos de cantores era comum ver algum cão também ‘cantando’,
enquanto tentava acompanhar o tom dos demais, e recebendo o mesmo tratamento
alimentar.
Raras vezes notou alguns casais, alguns grupos maiores, vários deles
nus, beijando-se, esfregando-se... Entregando-se a prazeres corpóreos, sem se
importar com qualquer coisa mais.
Ele seguia imune e isento a tudo isso.
O nariz continuava a sangrar.
A cabeça continuava a doer, como que zunindo, com um apito constante e
agudo.
Estava cansado, precisava repousar por um instante. Só queria sentar em
seu sofá, colocar um pouco de água gelada sobre o rosto, torcia para haver
eletricidade, ao menos um pouco em sua casa. Ou que tivesse sinal telefônico.
Demorou um tempo para chegar a seu prédio.
Tudo apagado, e, a trava elétrica fazia com que a entrada fosse impossível.
Pensou em usar a entrada do estacionamento – que dependia de chave –
somente para notar que havia uma barricada ao redor desta, e seria simplesmente
impossível atravessar.
Ainda mais quando viu o brilho de um revólver naquele breu todo, e
ouviu algumas nada amigáveis palavras de uma pessoa ali próxima ao portão.
Instintivamente andou na direção contrária, voltando para a rua.
Sentiu um formigamento no braço, o peito também doía um pouco.
Fechou os olhos por um instante e procurou um lugar confortável para se
sentar.
Sentou-se na guia da calçada.
Respirou fundo.
Respirou de novo.
Tossiu algumas vezes. Sem perceber adormeceu.
Então ouviu gritos, tiros e então mais gritos, sem saber ao certo de
onde, e acordou assustado..
Conseguiu ouvir um ruído de estática de rádios ligados nas
proximidades, e pôde notar estalos vindos da direção da porta elétrica de
abertura do prédio.
A eletricidade voltava a funcionar.
Sentiu seu bolso tremendo. Era o telefone.
“As autoridades estão aconselhando as pessoas a ficarem em suas casas,
com janelas trancadas devido a um vazamento químico – ou algo do tipo. Espero
que esteja bem. Um beijão, mor, te amo”.
Ela escreveu calma e pausadamente para que ele recebesse toda a
mensagem.
Enviou o texto antes mesmo que ele saísse de sua própria casa.
Só conseguiu ler as últimas palavras, com um sorriso largo nos lábios.
Seus olhos congelaram olhando para a pequena tela do telefone. Seu
corpo inerte ficou ali pelo restante da noite, talvez mais que isso.
O mundo seguiu em frente, ocupado demais para dançar ou estranhar o que
acontecera na noite anterior.
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